sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Tornar-se si mesmo



Por Dulce Critelli (Carta Capital, 22 de novembro de 2010 às 9:44h)

Não somos lançados no jogo da vida de mãos vazias nem totalmente em aberto. Nossa primeira identidade nos é dada pelos outros.



Felipe tem quatro anos. Quando ele nasceu, seu pai tinha 19 anos e sua mãe 18. Ambos de classe média, começando sua formação universitária, estavam namorando há uns dois meses quando descobriram que ela engravidara. Românticos, talvez, decidiram se casar.

As famílias levaram um susto. O casamento e a gravidez eram fora de hora, mas entendiam que para os dias de hoje a situação era completamente natural. O casal passou a morar com os pais da moça e Felipe nasceu logo depois. Ele era lindo e seus pais o amaram. Todos o amaram.

O pai e a mãe de Felipe, sem trabalho, continuaram a viver como filhos de seus pais. Achavam isso supernatural. E os avós de Felipe, também achavam supernatural continuar a bancar a vida dos filhos e, agora, também o neto, que os enchia de alegria.

Os pais de Felipe queriam ser independentes, que ninguém desse palpite nas suas vidas nem na educação do Felipe. Com relutância, começaram a buscar emprego. Sem qualificação suficiente para o mercado de trabalho, ganhavam mal. E se cansavam, porque não estavam acostumados a ajudar a prover a vida nem a cuidar senão de si mesmos.

Felipe tinha pouco mais de 1 ano quando os pais se separaram, e logo arrumaram outros namorados. Depois outros, e mais outros. A mãe do Felipe foi morar sozinha, num apartamento pequeno que os pais dela alugaram e o pai do Felipe continuou a morar na casa em que sempre viveu com o pai e a mãe.

Os dois trabalhavam e estudavam e namoravam e queriam se divertir. Felipe ficava uma vez com o pai, outra com a mãe, outra com os avós maternos, outra com os paternos, outra ainda com algum amigo do pai, ou da mãe. Nunca numa ordem certa, era sempre com quem estava disponível. Depois que aprendeu a falar, Felipe sempre perguntava, aflito, para a pessoa com quem estava no momento: “Onde eu vou dormir hoje?”

Felipe não tinha horário para dormir ou acordar, ou para comer. Frequentava todos os lugares que seus pais frequentavam. Seus horários ficavam determinados pelos horários da casa em que estivesse. Comia da comida da casa em que estivesse, brincava com os brinquedos que havia – se haviam – na casa em que estivesse… Às vezes, ficava sozinho na escolinha por horas, porque os pais se esqueciam dele.

Os pais de Felipe o amavam, mas não reconheciam a necessidade de se dedicarem a ele. Quando lhes diziam que essa era sua obrigação, respondiam que gostavam muito do filho, mas que eles eram jovens e o filho não poderia impedi-los de viver a vida.
A mãe do Felipe encontrou um parceiro mais fixo que também tinha dois filhos, vindos de dois outros casamentos anteriores. Um dia, o Felipe estava com seu pai e chamou o namorado da mãe de pai. O pai do Felipe não gostou.

Felipe, doce que era, começou a ficar mais agressivo e batia nos companheiros da escolinha. A mãe do Felipe foi estudar no exterior e o Felipe, que já tinha dispensado as fraldas, voltou a precisar delas e da chupeta. A mãe não gostou, mas só começou a pensar que podia estar fazendo algo errado, quando alguém perguntou para o Felipe quem era sua mãe e ele apontou para a avó.

A mãe do Felipe mudou muito. E seu pai também faz muitos esforços. O Felipe, hoje, fica mesmo é com a mãe, tem seu lugar, seus horários, suas referências próprias… seu mundinho. Ele está mais feliz e está se encontrando.

A história do Felipe me faz pensar em várias coisas, mas quero tratar apenas de uma, relativa às condições necessárias para a construção da identidade pessoal.

Quando um ser humano nasce, uma novidade vem ao mundo. Nunca ninguém antes de nós, nem depois de nós, será igual a nós. O mistério da humanidade é sua singularidade. Esta singularidade, porém, não vem pronta, mas é construída ao longo de toda a vida.

Quem sou eu e qual o sentido da vida, são as duas questões que começam no berço e carregamos como interrogação e tarefa até a hora da nossa morte. A pessoa que seremos vai se desenvolvendo lentamente. Os atos e as palavras, ou seja, os modos por meio dos quais enfrentamos os eventos da vida, vão moldando nossa identidade. Que sempre depende de como enfrentamos a vida.

Mas não somos lançados no jogo da vida de mãos vazias nem totalmente em aberto. Nossa primeira identidade nos é dada pelos outros. Quando alguém vem ao mundo, geralmente nasce no seio de uma família, de quem recebe nome e sobrenome, uma situação financeira, um país, um bairro, uma tradição cultural e religiosa… Recebe, também, as expectativas que os outros (principalmente seus pais) têm a seu respeito, além das esperanças, dos medos, das incapacidades, dos problemas… que os próprios familiares mais próximos vivenciam.

Nossa primeira identidade nunca nos abandona. Ela é nossa origem, o ponto e as condições com que começamos nossa vida, a primeira sinalização do nosso destino. É onde e como começamos a nos reconhecer, a formar nossa biografia e a nos tornar o personagem que somos.

As circunstâncias e situações da vida cotidiana, o modo como as pessoas tratam uma criança, os afetos, o tempo, a atenção que lhe dedicam, entre outros, são revelações tácitas (mesmo que totalmente inconscientes para os adultos) sobre sua identidade, sobre o que ela deve fazer e querer, se ela é importante ou uma presença supérflua no mundo.

Também as maneiras como os adultos, próximos à criança, vivem a vida são revelações sobre seu próprio ser. Assim como nossa primeira identidade nos é dada, também as primeiras orientações de como existir nos são definidas pelos outros. Aprendemos, sempre, a lidar com a vida, seguindo o exemplo dos outros.

Como é ser homem ou mulher, criança, adulto ou velho, o quê querer, como enfrentar situações, como lidar com o corpo, com dinheiro, com a cultura, a beleza… são aprendizados que fazemos na surdina, distraídos. Fazemos, somos e queremos, em primeira mão, como os outros fazem, querem e são.

Um elemento é importante para que essa aprendizagem aconteça: a repetição. Algo precisa durar entre nós para que nos habituemos a ele, de modo que esse hábito se torne parte de nossas condições de viver.

Junto com a repetição, para que uma criança vá formando, com segurança, sua identidade pessoal, outro elemento é primordial: a invariabilidade do ambiente, a rotina das atividades e a mesmice das relações pessoais. O que mantém nossa sanidade, em meio à infindável profusão de solicitações que vivemos a cada dia, é podermos voltar para a mesma casa, dormir na mesma cama, encontrar as mesmas pessoas e repetir os mesmos hábitos (de dormir, comer, brincar, de horários…).

O que seria de nós se não sentíssemos nosso cheiro nos lençóis, se não encontrássemos na geladeira as coisas que gostamos e queremos comer, se o relógio e todas as coisas que usamos não estivessem sempre no mesmo lugar, disponíveis ao uso ou à contemplação?

Sem rotina, hábitos, permanência e estabilidade do ambiente, exemplos a seguir, crenças organizadas e compartilhadas, estaríamos no caos. E o que é próprio dos humanos é a incapacidade de viverem no caos. Os homens precisam transformar o caos em cosmos, em mundo, para poderem viver nele. Fora isso, lhes sobra a loucura, a perdição, a fraca consciência de si (de seus limites, possibilidades, características…).

Felipe começou a receber, agora, aos 4 anos, um cosmos onde encontrar referências e construir autorreferências. O quê não terá compreendido do mundo e de si mesmo enquanto a vida que lhes ofereciam beirava o caos? O quanto não terá sofrido para conseguir, aí, sustentar-se e sobreviver?