sábado, 25 de agosto de 2012

A Poesia da Cidade

Eu vejo poesia na cidade.

Vejo os carros que passam depressa; os ônibus cheios de pessoas com destinos, intenções, e motivações diferentes.

Vejo histórias diferentes; de crianças que logo cedo adentram os coletivos com destinos às escolas; de adolescentes que sonham e se esforçam para ganhar, talvez, não aquilo que querem, mas para evitar o mal que não querem. 

Vejo as doces brincadeiras dos infantes; os rostos tensos dos adultos; a normalíssima sensualidade da mulher brasileira; pés que correm para o sucesso; outros, que procuram meramente uma solução; a fome que obriga a pausa no caminhar.

Vejo o bom senso; a vontade de ajudar; o altruísmo nos jovens; a educação da menina interiorana.

Vejo o típico sono daqueles que cedo madrugam; as pernas cansadas do trabalhador; a boa música que ameniza o percurso e que mescla lembranças e sentimentos. Vejo o caminhar do hipócrita, que faz do seu caminho uma folha ao vento.

O maniqueísmo manifesto nos jingles das campanhas políticas; a traição, o pecado, o ócio, a oportunidade, a liberdade, e a libertinagem.

Vejo os microtemplos evangélicos espalhados nos subúrbios; vendedores de esperanças e de ilusões.

Vejo a indolência dos nossos políticos; o egoísmo dos nossos governantes, e a malversação expressa em cada rua malestruturada, em cada jovem ocioso, em cada pés descalços.

 A cidade declama sua poesia. Não temos tempo em ouvi-la. Declama em cada lugar, em cada rosto, pés, mãos... em cada carro, moto, bicicleta, sons, silêncios...

 Nossos olhos miram somente o objetivo; não sabem eles que no âmago de cada alma existe uma paisagem pronta a ser explorada, cheia de significados, que muitas vezes não se objetiviza. Os olhos do corpo não podem vê-la, interpretá-la, senti-la, tocá-la...

 Sim, a cidade tem sua poesia!

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

"É que Narciso acha feio o que não é espelho"

Hoje pela manhã, ao sair de casa para o trabalho, pude assistir no Jornal Bom Dia Brasil a reportagem sobre os 70 anos de Caetano Veloso. Ao adentrar ao carro e ligar o rádio (na Educativa FM, única rádio que escuto), contemplei parte da música intitulada Sampa – de autoria de João Gilberto, mas que ganhou mais reconhecimento pela voz de Veloso. Parte da letra desta música fala o título deste artigo. Mas não é de Caetano que quero falar.

Ao tomar a cultura como um todo, levando em conta seus aspectos extero-interior, somos moldados de forma tal que quase não temos forças para ir de encontro. Aliás, sequer nos damos ao trabalho disto. As ciências humanas e sociais ecoam o coro de “tendência normal”. Essa normalidade tem seus prós e contras. O primeiro, porque o Ser humano não precisa dispensar energias lutando contra uma tão grande nuvem que o cerca completamente. Se essa nuvem é capaz de ditar até o pensamento cotidiano – considerado como uma microinfluência – quanto mais os aspectos mais macros – economia, política e religião.

O segundo, é que nem sempre alguns desses aspectos culturais nos impulsionam ao que é construtivo. Sem ter a pretensa de julgar outras culturas – e já me utilizando dela própria para julgar – mas tomemos como exemplo a cultura de morte perpetrada entre os mulçumanos radicais. Entre os seus pares, ir de encontro à ideologia anti-américa é motivo de, no mínimo, desonra. É justamente quando nos tornamos janízaros de nossa própria cultura (e sua ideologia inerente) que nos fazemos narcisistas. Olhamos “o outro” de maneira preconceituosa e muitas vezes odiosa. Isto é, quando olhamos! Não suportamos a interpretação alheia e, muito menos, quando “o outro” nos interpreta. Isso fere nossa orgulho, pois nos sentimos donos de nossa cultura – criadores dela, talvez – agindo com total repulsa à idéia de ser julgado por quem não vive a nossa realidade. O olhar do outro sobre nós deve ser recebido com curiosidade, agrado – pois o outro se propôs a nos pensar – e, claro, com crítica.

Quando um determinado povo elege sua cultura como superior, tende a não se permitir aprender algum aspecto cultural que talvez lhe ajude no seu cotidiano. Para exemplificarmos, no contexto nacional, o sulista urbano elege a sua cultura rural como inferior; estes, por sua vez, elegem os nordestinos como inferiores; já estes elegem sua cultura rural como inferior; mas esquecem-se os sulistas urbanos e rurais, nordestinos urbanos e rurais, que os europeus tratam o sulamericano com desdém. Para eles, somos “farinha do mesmo saco”. Dentro da própria Europa há distinções. Os países eurolatinos são vistos pelas culturas nórdicas e germânicas como inferiores. E entre os nórdicos e germânicos há outros preconceitos, sabemos.

Certa vez, andava pelas ruas do centro comercial de Maceió, e encontrei uma mendiga que desdenhava de outra por não ter um pedaço sujo e velho de espuma que servia de colchão. É uma corrente longa, inquebrável e socialmente plural, não restrita às classes sociais privilegiadas. Muitas vezes, as repostas de alguns de nossos problemas podem estar nos ensinos de outros povos, tribos, raças e classes sociais – haja vista que a cultura pode se divergir dentro de um mesmo espaço geográfico e social. Para tanto, se faz necessário estarmos sempre antenados e prontos para aprender, sem se deixar preceder de idéias preconceituosas – ideias muitas vezes construídas pela própria cultura. Até porque todo e qualquer tipo de ação leva a uma reação.

O meu narcisismo pode estimular o narcisismo ao outro, por inspiração ou retaliação. E assim viveremos fissurados em nosso ego, ilusionistas de nós mesmos. É... Narciso acha feio o que não é espelho. Que tal quebrarmos seu (nosso) espelho?

Troca de E-mails

Eis o conteúdo da breve troca de e-mail's (ipsis literis) com o colega Matheus Barros.

Éder: Você jejua? Dê-me prova disto por suas obras. Se você vê um homem pobre, tenha piedade dele. Se você vê um amigo sendo honrado, não o inveje. Não deixe que somente a sua boca jejue, mas também o olho e o ouvido e o pé e as mãos e todos os membros do seu corpo. Que as mãos jejuem, sendo livres de avareza. Que os pés jejuem, cessando de correr atrás do pecado. Que os olhos jejuem, disciplinando-os a não fitarem o que é pecaminoso. Que os ouvidos jejuem, não ouvindo conversas más e fofocas. Que a boca jejue de palavras vis e de criticismo injusto. Porque, qual é o proveito se nos abstemos de aves e peixes, mas mordemos e devoramos os nossos irmãos? Possa Aquele que veio ao mundo para salvar pecadores nos fortalecer para completarmos o jejum com humildade, tendo misericórdia de nós e nos salvando. Escrito por: São João Crisóstomo (349-407), bispo de Constantinopla, foi um dos teólogos e escritores mais importantes do início da Igreja Cristã.

Matheus: Muito bom!!! Grato pela lembrança do email. Repasso também algo para meditação: Uma outra percepção errônea com respeito à natureza da Bíblia é considerar a Escritura como um mero registro de discursos e eventos reveladores, e não a revelação de Deus em si mesma. A pessoa de Cristo, suas ações e seus milagres revelavam a mente de Deus, mas é um engano pensar que a Bíblia é meramente um relato escrito deles. As próprias palavras da Bíblia constituem a revelação de Deus para nós, e não somente os eventos aos quais elas se referem. Alguns temem que uma forte devoção à Escritura implica em estimar mais o registro de um evento revelador do que o evento em si mesmo. Mas, se a Escritura possui o status de revelação divina, então tal preocupação não tem fundamento. Paulo explica que “Toda Escritura é soprada por Deus” (2 Timóteo 3:16). A própria Escritura foi soprada por Deus. Embora os eventos que a Bíblia registra possam ser reveladores, a única revelação objetiva com a qual temos contato direto é a Bíblia. Enquanto uma pessoa negar que a Escritura seja a revelação divina em si mesma, ela permanece sendo “apenas um livro”, e essa pessoa hesita em lhe dar reverência completa, como se fosse possível adorá-la excessivamente. Há supostos ministros cristãos que pressionam os crentes a olhar para “o Senhor do livro, e não para o livro do Senhor”, ou para algo com esse objetivo. Mas, visto que as palavras da Escritura foram sopradas por Deus, e aquelas são a única revelação objetiva e explícita de Deus, é impossível olhar para o Senhor sem olhar para o seu livro. Visto que as palavras da Escritura são as próprias palavras divinas, alguém está olhando para o Senhor somente até onde estiver olhando para as palavras da Bíblia. Nosso contato com Deus é através das palavras da Escritura. Deus governa sua igreja através da Bíblia; portanto, nossa atitude para com ela reflete nossa atitude para com ele. Ninguém que ama a Deus não amará as suas palavras da mesma forma. Aqueles que declaram amá-lo, devem demonstrar isso por uma obsessão zelosa para com as suas palavras: Como eu amo a tua lei! Medito nela o dia inteiro... Como são doces para o meu paladar as tuas palavras! Mais que o mel para a minha boca! (Salmo 119:97,103)

Éder: Muito boa palavra meu irmão, parabéns! No entanto, gostaria de polemizar um pouco, se me permite. Quando você fala “Mas, visto que as palavras da Escritura foram sopradas por Deus, e aquelas são a única revelação objetiva e explícita de Deus...”, isso me fez lembrar 2Ts. 2.15: “Então, irmãos, estai firmes e retende as tradições que vos foram ensinadas, seja por palavra, seja por epístola nossa”. Não me tenha por liberal, mas você não acha que essas palavras dão abertura a levarmos em conta não apenas as escrituras como modo de conhecer e cultuar a Deus, visto que a própria escritura dá abertura a levarmos em conta não apenas as palavras contidas nas epístolas, mas também as tradições que foram ensinadas? Um outro ponto: quando o apóstolo Paulo aconselha sobre a vida conjugal, e diz que “é melhor o homem estar só”(cf. 1Co. 7.7), no verso 12 do mesmo capítulo, o próprio Paulo aconselha e deixa bem claro que “quem fala é ele, e não o Senhor”, isso já não serveria para dizer que nem toda a escritura é inspirada? Ainda uma outra coisa: quando dizemos que a Bíblia é a Palavra de Deus, não estamos, de certa forma, limitando o vocabulário de Deus? Peço sua ajuda, como amigo e irmão, porque muitas vezes esses questionamentos me tiram o sono.

Matheus: Querido irmão, Deus em sua soberania controla todas as coisas inclusive os pensamentos e inclinações que temosao ponto de nos vivificar (eleitos) ou deixar que permaneçamos mortos em nosso pecados (réprobros), isso é verdade com respeito a todo indivíduo, incluindo os escritores bíblicos. Deus de uma tal forma ordenou, dirigiu e controlou as vidas e pensamentos de seus instrumentos escolhidos que, quando o tempo chegou, suas personalidades e os seus cenários eram perfeitamente adequados para escrever aquelas porções da Escritura que Deus tinha designado para eles: Disse-lhe o SENHOR: “Quem deu boca ao homem? Quem o fez surdo ou mudo? Quem lhe concede vista ou o torna cego? Não sou eu, o SENHOR? Agora, pois, vá; eu estarei com você, ensinando-lhe o que dizer” (Êxodo 4:11-12). Quanto a tradição oral, devemos compreender que primeiro o registro da escritura estava ainda em formação canônica, ou seja, ainda não havia sido fechados os 66 livros (Deus ainda estava escrevendo a Bíblia por intermédio dos seus instrumentos os homens) por este motivo o que os apóstolos ensinavam condiziam com aquilo que foram construindo o novo testamento, conquanto o que os rabinos ensinavam por tradição, entendo que se remetia ao que conhecemos por antigo testamento, ou seja, ao final é tudo da Bíblia que estamos falando, o que difere é a época em que foi vivida. Então, quando chegou o tempo de escrever, o Espírito de Deus supervisionou o processo para que o conteúdo da Escritura fosse além do que a inteligência natural dos escritores pudesse conceber. O produto foi a revelação verbal de Deus, e ela foi literalmente o que Ele desejava pôr por escrito. Deus não encontrou as pessoas certas para escrever a Escritura; Ele fez as pessoas certas para escrevê-la, e então, supervisionou o processo de escrita. Portanto, a inspiração da Escritura não se refere somente aos tempos em que o Espírito Santo exerceu controle especial sobre os escritores bíblicos, embora isto tenha deveras acontecido, mas a preparação começou antes da criação do mundo. Esse ponto de vista acerca da inspiração explica o suposto “elemento humano” evidente na Escritura. Os documentos bíblicos refletem vários cenários sociais, econômicos e intelectuais dos autores, suas diferentes possibilidades, e seus vocabulários e estilos literários singulares. Este fenômeno é o que se poderia esperar, dado o ponto de vista bíblico sobre a inspiração, no qual Deus exerceu controle total sobre a vida dos escritores, e não somente sobre o processo de escrita. O “elemento humano” da Escritura, portanto, não prejudica a doutrina da inspiração, mas é consistente com ela e pela mesma explicado. Quando o Apóstolo Paulo fala digo eu e não o Senhor, ele não estava ciente de que estava escrevendo a Bíblia apesar de estar assim o fazendo, isto é, mesmos as passagens que o elemento humano parece se evidenciar, em ultima analise é Deus quem está governando na escrita. Espero que possamos continuar aprendendo juntos nessa caminhada excelente chamada vida cristã. Seu irmão, Matheus.

Uma Breve Teologia do Sono

5 horas da manhã. Na manhã de domingo o mundo não é escuro, mas também não há cor. Tudo é preto, branco e cinza, exceto a luz laranja na garagem do outro lado da rua,que brilha através da janela do meu quarto. Não há brisa, e as folhas de álamo são capturadas como uma fotografia em silêncio.

As estrelas se foram, mas o sol não surgiu de todo; por isso, você não pode dizer se o céu está nublado ou claro. Muito em breve saberemos. 

Sento na beira da minha cama tentando desenvolver uma teologia do sono. Por que Deus nos projetou de tal forma que tivéssemos necessidade de sono? Dormimos durante um terço das nossas vidas. Apenas pense nisso: gastamos um terço das nossas vidas como mortos. Basta pensar em tudo o que está sendo deixado de lado, mas que poderia ser feito, se Deus não tivesse nos projetado para precisar de sono. Certamente não há dúvida que ele poderia ter nos criado com nenhuma necessidade de sono. E apenas pense: todos poderiam se devotar a duas carreiras, e não sentir-se cansado. Todo mundo poderia ser um “obreiro cristão em tempo integral” e ainda manter o seu trabalho. Poderíamos nos envolver em muitas coisas dos negócios do nosso Pai.

Deus criou o sono como um lembrete contínuo de que não deveríamos ficar ansiosos, mas descansar nele. Por que Deus imaginou o sono? Ele nunca dorme! Ele teve a ideia do nada. Deus criou o sono pensando nas suas criaturas terrenas. Mas por quê? O Salmo 127.2 diz: “Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes; aos seus amados ele o dá enquanto dormem”.

De acordo com esse texto, o sono é um dom de amor, e um dom que é frequentemente desprezado pela labuta ansiosa. Um sono tranquilo é o oposto da ansiedade. Deus não quer que seus filhos sejam ansiosos, mas que confiem nele. Portanto, concluo que Deus criou o sono como um lembrete contínuo de que não deveríamos ficar ansiosos, mas descansar nele.

 Sono é um lembrete diário, da parte de Deus, de que não somos Deus. “É certo que não dormita, nem dorme o guarda de Israel” (Sl 121.4). Mas Israel dormirá. Não somos Deus! Uma vez ao dia Deus nos envia para a cama como pacientes com uma doença. A doença é a tendência crônica de pensar que estamos no controle e que nosso trabalho é indispensável. Para nos curar dessa doença Deus nos transforma em sacos indefesos de areia uma vez por dia.

Quão humilhante ao executivo corporativo autossuficiente ter que entregar todo o controle e ficar tão mole quanto um lactente todo dia. O sono é uma parábola que Deus é Deus e nós meros homens. Deus cuida do mundo numa boa enquanto o hemisfério dorme. O sono é como um disco quebrado que toca a mesma mensagem todos os dias: O homem não é soberano. O homem não é soberano. O homem não é soberano.

Não deixe que a lição se perca em você. Deus quer que confiemos nele como o grande trabalhador que nunca se cansa e nunca dorme. Ele não fica impressionado com as nossas noites acordadas nem quando madrugamos cedo; mas ele se deleita com a confiança tranquila que lança toda a ansiedade nele e dorme.

Em busca do descanso, Por: Pastor John Piper 

Fonte: http://monergismo.com/john-piper/uma-breve-teologia-do-sono/

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Intelectuais Procuram-se!

Por: António Pinto Ribeiro O que terá feito com que a romancista e ensaísta Susan Sontag deixasse, em 1993, o conforto do seu apartamento, em Manhattan, em Nova Iorque, e decidisse ir para o Inverno de Sarajevo, no meio de uma guerra fratricida, encenar "À Espera de Godot", de Samuel Beckett? Seria, porventura, uma atitude legada dos intelectuais comprometidos que foram Zola, Sartre, Simone de Beauvoir ou Camus, intervindo na rua em defesa da justiça e lutando manifestamente por uma causa pública? Seria, eventualmente, uma acção comprometida com a necessidade de agir, Sontag realizando-se assim como pensadora e conciliando, por um momento, o grande conflito entre a acção e o pensamento, que é o fantasma de todo o intelectual, na perspectiva de Hannah Arendt, que a este assunto dedicou grande parte das suas obras? Nunca o saberemos, provavelmente; no entanto, numa entrevista curta a Allan Gregg, Sontag afirma que foi para Sarajevo não como escritora, mas como pessoa que não podia deixar de intervir; considerando, aliás, que o seu envolvimento naquele genocídio era, mais do que normal, normativo. Encenou, por isso, uma das peças que melhor significam o absurdo (a esperar por uma entidade exterior que possa resolver os nossos destinos) e trabalhou na área cultural e de educação. O facto de dizer que não foi enquanto escritora é essencialmente uma questão de pudor. Vem isto a propósito da recorrência com que o tema do intelectual tem aparecido nos últimos tempos: num suplemento Ípsilon deste Verão e numa crónica de Vitor Belanciano, no PÚBLICO, ele era exaustivamente abordado; um número recente da revista francesa "Les Inrockuptibles" incluía um dossier sobre a matéria; e o ensaísta João Barrento acaba de publicar um livro - "O Mundo está Cheio de Deuses" - cujo ensaio mais extenso aborda este mesmo tema de um modo particularmente elaborado. O que está em causa neste conjunto de intervenções é sumário: porquê o regresso desta figura, caso o regresso fosse possível? que condições tem para cumprir a sua missão? e, finalmente, qual é o seu perfil? O regresso ao tema desta figura terá necessariamente a ver com a possibilidade de que haja uma leitura do mundo que, não vindo de fora do sistema, se evidencie com um ponto de vista do exterior e que, sendo embora crítico, seja portador de esperança. Com efeito, isto quer dizer que continua a fazer sentido expressar a realização do humano com propostas alternativas ao pensamento único. Também diz da necessidade do aparecimento de alguém que faça o contraponto aos fazedores de opinião, e que, a partir do que é a doxa e a informação generalista, formule, nesses instrumentos de condicionamento social que são parte substantiva dos média, o que nestes fazedores de opinião é a ambição de poder mais recalcada. Na verdade, nada mais contrário existe à racionalidade e à Filosofia do que as prestações dos opinadores profissionais. As condições de exercício da actividade dos intelectuais são escassas e, para citar João Barrento, que cita Pasolini, mais parecem pirilampos na negra noite actual, embora piscando e iluminando parte dela. A sua fragilidade é uma constante, mas também o é a sua perseverança. Pouco crédito terá o intelectual que se afirme exclusivamente como portador da XI tese de Karl Marx sobre Feuerbach: "Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão é transformá-lo." Contudo, a esperança no regresso do intelectual é a de que ele não abdique de ler o mundo e de o entender. Resta, portanto, saber como proceder "a posteriori". O que fazer, uma vez que ninguém pode pedir que todos se comportem como Susan Sontag, agindo com o próprio corpo, comprometendo-se na deslocação para o terreno da intervenção. Aqui a tese de João Barrento é oportuna, porque ao considerar que a figura do intelectual se pluralizou, reconhece a multiplicidade de acções e de perfis que o intelectual contemporâneo pode reivindicar. E, sendo assim, podemos admitir que cumprem o papel de intelectual, participando por via do discurso, o linguista Noam Chomsky, um dos maiores críticos e interventivos cientistas sobre as políticas dos EUA, em especial dos governos Reagan e Bushes, ou Jürgen Habermas, que ainda muito recentemente, numa conferência em Paris, no cansaço dos seus 80 anos, solicitava a intervenção de todos no espaço público para evitar o que se avizinha na Europa: o fim da democracia (palavras dele). E ainda no plano que é do dizer, mas também do fazer, a um conjunto de intelectuais oriundos das ex-colónias europeias que, por conveniência de linguagem, se apelidam ora de teóricos do pós-colonialismo, ora de teóricos dos estudos de cultura e de política, se devem formas performativas de intervenção. Seja no caso de Homi K. Bhabha, criador de um dos mais felizes conceitos e ferramentas operativas, propondo a dúvida global seguida pela negociação cultural na resolução de conflitos e colaborador de ONG; de Arjum Appadurai, estudioso dos efeitos dos média na representação condicionada do mundo e da criação de limites ao funcionamento das democracias, sendo, ao mesmo tempo, responsável por uma organização que intervém, na Índia, solucionando conflitos de natureza étnica ou motivados pela pobreza; ou de Benjamin Arditi, paraguaio, autor de análises pertinentes sobre o mundo pós-liberal e também responsável por organizações de jornalistas que, no Paraguai, fazem um trabalho de desconstrução da produção de notícias pelos média. Esta pluralidade e esta deslocação para outros perfis admite que o intelectual possa passar do plano do dizer para o plano do mostrar, e aí artistas, performers, realizadores, curadores, programadores podem intervir revelando como e onde estamos. Em abono deste tipo de intelectuais para quem pensar e agir resulta no mostrar estão agora, para evocar Jacques Rancière, razões de fundo dos nossos tempos. Primeiro: a arte e a política ocupam agora o lugar que durante muitos anos foi da estética; porém como é, hoje, possível admitir uma resistência desta quando toda a política se esteticizou?! Segundo: a política tornou-se lúdica e teatral, e, para além disso, muitas formas de arte provêm do mais interior do social. Terceiro: a arte e o pensamento activo criam não obras mas formas de vida que, na sua hibridez, ganham um novo potencial crítico. Mostrando, dizendo ou agindo na pluralidade das suas figuras. Intelectuais procuram-se! Fonte: http://www.antoniopintoribeiro.com/cms/?intelectuais-procuram-se!,80