sábado, 8 de maio de 2010

Sobre a Amizade


Há algum tempo, quando fui buscar meu pai no aeroporto – regressava de Cuiabá – tive a oportunidade de comprar um livro de Marco Tulio Cícero, um dos grandes filósofos já produzidos pela humanidade. Tal livro tem por título “LÉLIO, ou A AMIZADE”. Achei interessante sua visão romântica e ao mesmo tempo realista sobre a amizade – o autor enfatiza o lado romântico. Mais especificamente sobre sua visão realista, logo houve uma grande identificação com o que penso a respeito. Sempre achei a amizade um “mal necessário”. Sim, isso mesmo! Mal porque, ao meu ver, a amizade não passa de uma demonstração de fraqueza da alma humana (medo da solidão, conceituação funesta da solidão, necessidade irrisória de identificação, iludir a vida com momentos fugazes de alegria, fazer-nos esquecer do triste mundo em que vivemos – tornando-nos egoístas –, etc.). Cícero vem enfocar este lado “pejorativo” da amizade quando pergunta:

“Será por fraqueza e indigência que se busca a amizade, cada um visando por sua vez, através de uma reciprocidade dos serviços, receber do outro e devolver-lhe esta ou aquela coisa que não pode obter por seus próprios meios, ou seria isto apenas uma de suas manifestações, a amizade tendo principalmente uma outra origem, mais interessante e mais bela, escondida na própria natureza?”

Minha visão “pejorativa” da amizade eleva-se ao pensar sê-la uma demonstração egoística da humanidade. A verdade é que faz-se amizades apenas visando suprir a necessidade momentânea – e ao mesmo tempo constante – de companhia. Quando vejo amigos se encontrarem, enxergo uma supressão mútua de necessidades, carências, e não uma “origem mais interessante e mais bela, escondida na própria natureza”. É tudo uma questão de interesses, e nada mais! Talvez influenciado pelo conceito aristotélico de felicidade (1), Cícero vem nos dizer que a vida só é feliz se existir no círculo de amizade "[…] todos os bens que os homens julgam ser necessário buscar, consideração, glória, tranquilidade de espírito e alegria [...]” Como se vê, busca-se apenas supressão de interesses; alguns deles bastante irrisórios (consideração e glória), que apenas almas doentias, sedentas por poder (2), a buscam.

Outro ponto de relevância importância a ser dita é o fato da impossibilidade de se manter intacta uma amizade até o fim de nossas vidas. Isto porque o que cimenta esta troca mútua de necessidades, chamada romanticamente de “amizade”, é a identificação de interesses (especialmente no tipo de diálogo existente entre as partes), bem como a manutenção do caráter e da personalidade – que afetam diretamente o tipo de diálogo existente. Como bem sabemos, tais identificação e manutenção são impossíveis de se manterem inertes, pois, enquanto Sujeitos sociais, estamos à mercê de fatores determináveis que afetam nosso Ser, modificando-o. Dentre os vários fatores, os mais determinantes são a idade e a educação. Tais fatores trazem, intrinsecamente, a maturação de nossas personalidades. Não há como manter os mesmos diálogo e pensamento que tínhamos há 15 anos, por exemplo; assim como não há possibilidade de manutenção de nossas opiniões à medida que crescemos em leitura e conhecimento prático.

Mas, já que a amizade é um “mal necessário”, como escolhê-las? Alguém pode pensar: Baseado nas palavras acima dar-se a entender que, já que mudamos com o tempo e com o acúmulo de conhecimentos, então mudaremos nossas amizades constantemente. Bom, não é bem assim. Até porque nossa personalidade chega a um ponto de maturação que não podemos mexê-la, isto é, a parte não-modificável da personalidade (a parte que contém os valores e princípios) – uma vez que creio na existência de uma outra parte auto-modificável (nem todos os comportamentos e ideias são movidos pelos nossos valores). Mais uma vez Cícero vem nos socorrer quanto a esta indagação:

“A regra que caberia antes ensinar é escolher o leque de nossas amizades com bastante cuidado para jamais começarmos a amar alguém que corremos o risco de um dia odiar. Ademais, se ocorresse de não termos sido muito felizes na escolha de nossas afeições […] deveríamos suportá-la, e não prepararmo-nos para tempos de inimizade.”


Como cada ser humano tem em si a capacidade de pré-julgamento (ou preconceito), dá para nos utilizarmos dele na avaliação daqueles que se aproximam, ou até mesmo de quem nos aproximamos – já que, em nossa sociedade, não há demérito algum em cedermos à fraqueza de nossa alma na busca da “amizade”. Se, durante o período de aproximação, alguma atitude ou ideia da outra parte te parecer suspeito, isso servirá de sinal de que um dia você poderá ser a vítima de tais comportamentos; neste caso, fuja! Procure em outras pessoas o mais depressa possível, pois um dia você poderá odiá-la. Mas não precisa romper de forma a produzir inimizade – como erroneamente já fiz diversas vezes na vida – basta apenas se afastar (mesmo que seu afastamento venha produzir mais rancor ao outro lado).

Parece-me bem extremista sermos frios e racionais demais nas nossas escolhas , como se o fator emocional nunca estivesse presente. Mas o outro extremo é mais perigoso, mais vulnerável, com grandes chances de decepção futura. É bem verdade que o Ser humano é muito negligente nas suas escolhas. Cícero já nos dizia com mais propriedade:

“Cada um sabe dizer quantas cabras e carneiros possui, mas não quantos amigos; quando as pessoas adquirem esses animais, fazem-no com o maior cuidado, enquanto na escolha a seus amigos são negligentes e não sabem em que tipo de sinais, de marcas, se quiserem, irão confiar para reconhecer só que seriam capazes de amizade.”

E ele continua:

“Nesse sentido, são as pessoas seguras, estáveis, constantes que devemos escolher, uma espécie muito rara. Ora, é difícil julgá-las corretamente sem a prova dos fatos, e justamente essa prova só pode realizar-se dentro da própria amizade. De sorte que a amizade precede o julgamento [...]”

Neste caso, a amizade serve como um test-drive bem diferente, onde ao invés de apenas dirigir – já que não podemos dirigir a amizade 100% do nosso jeito – nos contentamos em ficar parte da viagem no banco traseiro e deixar-se levar para ver se tal companhia dirige bem, ou seja, se é confiável, estável. Mas vale salientar que também é de extrema importância que você dirija um pouco, pois isso é uma maneira de você deixar-se ser avaliado, sem máscaras, sendo democrático e querendo aos outros o que você deseja a si mesmo.

O que muitas vezes acontece é o não reconhecimento, de imediato, da verdadeira face do amigo. Isso ocorre pelo fato salutar de se estar bastante envolto emocionalmente com o novo amigo – todo início de relacionamento é sempre agradável, uma nova aventura e, de certa forma, um novo horizonte que se abre em nosso mundo; ou pela ânsia em satisfazer a carência de nossa alma por amigos, de uma maneira que ignoremos os defeitos dele – o que considero de um egoísmo profundo, pois só estamos interessados em nosso “umbigo”, ou seja, em nossas necessidades; ou até mesmo pela máscara imposta pelo nosso amigo, já que, o princípio da conquista ao sexo oposto também se aplica no campo da amizade. Às vezes me aventuro em imaginar que há semelhanças entre as etapas cronológicas – ou pelo menos lógicas – do casamento e da consolidação de uma amizade. Para dar-se ao casamento, faz-se necessário que o mesmo seja antecedido pela a. Paquera; b. Namoro e c. Noivado. Na amizade não é diferente, pois o período de “paquera” inicia-se com a atenção, interesse e desejo que focamos em alguém ou um grupo específico (lembra muito o modelo A.I.D.A. utilizado pelos profissionais e teóricos do marketing – Atenção, Interesse, Desejo e Ação). Dada a ação – início da amizade ou namoro, conforme nossa analogia – começa a fase de conhecimento mais aprofundado do outro. Somente o tempo poderá desmascará-lo. Deve haver uma atenção muito forte não apenas na esfera da amizade entre os dois. Este conhecimento deve ultrapassar as fronteiras deste campo peculiar aos dois e avaliar o relacionamento do amigo com outros amigos e com a sociedade em geral. Assim, verificaremos se há máscaras da parte dele em relação aos outros, e nunca esquecer que o que ele faz aos outros pode fazer a você também! É o princípio da estabilidade de caráter já mencionado por Cícero anteriormente.

A máscara, muitas vezes, vem caricaturada de adulações, bajulações e de baixa complacência, onde esconde-se a verdade de seus sentimentos no intuito de conquistar o outro. É um comportamento típico de “[...] pessoas frívolas, hipócritas, cuja palavra busca sempre agradar, jamais exprimir a verdade […] por conseguinte, essa triste e vã adulação [recebe] créditos senão junto àqueles que se comprazem nela e a atraem, convém prevenir as pessoas mais ponderadas e mais sérias a prestarem atenção para não se deixarem cair na armadilha de uma complacência hábil. O adulador que manobra abertamente não pode passar despercebido, a não ser de um perfeito idiota; mas para evitar que o adulador hábil, oculto, consiga se insinuar, é preciso ser muito crítico.”

Quando advém os acontecimentos negativos – e virão! - e com eles as frustrações, vem a fase em que você se verá agindo em dois caminhos distintos, conforme a estrutura de sua natureza psíquica e emocional: romper (separar) ou ignorar os graves defeitos do amigo, tornando-se conivente com suas falhas, e correndo o risco de se tornar igual a ele - pois é inevitável, devido ao intercâmbio de experiências e comportamentos ocorridos numa relação. Quem escolhe esta última opção, encontra-se num plano falso da amizade. Quanto a isso, Cícero vem nos dizer com mais propriedade:

“É frequente sobrevirem importantes acontecimentos que levam a afastar-se dos amigos! Quem deseja evitar isso porque há o risco de lhe ser difícil suportar os lamentos, tem uma natureza fraca, frouxa e, precisamente por essa razão, encontra-se numa situação inteiramente falsa no plano da amizade.”

Quem escolhe o primeiro caminho estará sendo honesto consigo e com o outro. Nem sempre o caminho que nos traz dor é sempre o pior: “Todo sofrimento breve é obrigatoriamente suportável, mesmo que intenso”. Pode parecer de imediato, pois todo e qualquer rompimento é carregado de dor e sofrimento. Mas o fruto de tal atitude é sempre saboroso, pois, no fundo, há uma satisfação consigo de que o correto foi feito, e isso contará pontos no fortalecimento de nosso caráter e personalidade. É um princípio Ciceroniano: “Com frequência, inesperadamente, alguns graves defeitos de amigos se manifestam, seja em relação a seus próprios amigos, seja em relação a outras pessoas […] as amizades deste tipo, convém deixá-las se afrouxarem até o desaparecimento completo [...]” Por isso que é interessante evitar iniciar uma amizade criando expectativas em relação ao outro. É difícil, bem verdade, mas não impossível. “[...] a única precaução e medida de previdência consiste em não se apressar em amar [...]” Para isso, não espere que do outro lado haja amor também, pois, como esperar do candidato a amigo algo que você não lhe dá? É preciso estar atento a isso para evitar julgar precipitadamente o outro, tachando-lhe de “frio” e “insensível”.


(1). “Felicidade é o descanso da vontade na posse do bem.”
(2). De acordo com a corrente psicanalítica “Trilogia Analítica”, ao qual me afeiçoo, todo aquele que busca o poder, seja em qualquer esfera (política, religiosa, social, etc.) possui um espírito doentio.

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