terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Sobre Representações Sociais.


No meu entendimento, toda e qualquer discussão no âmbito das Ciências Sociais, Políticas e Psicologia Social resume-se em Representações Socias. É um conceito caríssimo para mim. Portanto, merece uma reflexão à respeito.

Ao nosso entendimento, começamos à tratar de Representações Sociais, pois entendemos ser ela um espaço de construção da realidade que cerca o indivíduo, bem como trata-se, também, de um espaço que constantemente é construído por realidades inovadoras no espaço social do indivíduo, bem como pode ser construído por indivíduos que cheguem ao mesmo espaço, com visões diferentes da realidade e que podem interferir decisivamente na sua visão (construção) do mundo que o cerca. Somos, ao mesmo tempo, construtores e construções – não acabadas – da realidade que nos cercam. Tal afirmativa dar-se ao fato de sermos também alvos do olhar inquiridor do outro que pertence, ou não, de seu ciclo social. Tal contínua construção tem como base a realidade histórica vivida pelo ator social. Os valores – quer religiosas, familiares, ou de uma outra comunidade qualquer –, a situação sócio-econômico, bem como a educacional e as conversações são, ao nosso ver, os condicionantes sine qua non que irão determinar a visão do mundo que vão nos acompanhar no decorrer de nossas vidas. Porém, isto não quer dizer que tal visão de mundo é algo acabado, sem nunca receber modificações. Devemos sempre nos lembrar que o Ser Humano é um ser inacabado, um Ser sempre em construção, um Ser social e, como tal, sempre aberto a receber conscientemente e de maneira constante as modificações provenientes do mundo que o cerca. Mais à diante, iremos ver algumas conceitualizações à respeito de representações Sociais e tentaremos abrir discussões sobre o tema ao qual esta reflexão pretende.

Começaremos por Durkheim, por ser ele o autor que primeiro trabalha com este conceito. Para ele, o termo se refere a categorias de pensamento através das quais determinada sociedade elabora e expressa sua realidade. Podemos considerar esta elaboração da realidade como alicerce em que vão sendo construídos, através dos tempos, todas as outras ideologias e culturas que serão acrescentadas neste inacabado edifício da Representação Social. Durkheim vai advogar que este alicerce é onde sempre vai ser conservada a marca da realidade onde nascem, mas que também vão se reproduzir e se misturarem, tendo como causa outras representações e não apenas a estrutura social. Aqui queremos destacar este lado moldável das Representações Sociais. Ao mesmo tempo que existe uma base/alicerce, outros “tijolos e cimentos” sociais são colocados e misturados nesta base fazendo com que haja uma modificação – portanto, não completa – das visões e interpretações à respeito das situações circuvizinhas, bem como da realidade como um todo. Para Durkheim, esta base/alicerce das representações são o “substrato social”, porém, vai advogar também sua autonomia relativa. Para ele, algumas, mais que outras, exercem sobre nós uma espécie de coerção para atuar em determinado sentido. Dentre estas se destacam a religião e a moral, assim como as categorias de espaço, tempo e de personalidade, consideradas por ele como representações sociais históricas. Desta feita, podemos ver que uma ou umas esfera(s) de nossa existência pode(m) afetar mais do que outras na construção que fazemos da realidade. Como vimos, Durkheim considera a religião e a moral como os principais condicionantes, bem como as representações sociais históricas. Ao nosso entender, não é qualquer experiência fugaz que afeta nossa visão de mundo, mas somente aquelas em que lidamos no dia-a-dia, quer sejam elas impostas ou de nossa preferência. São, por nós, consideradas como mais sólidas, as mais significativas, que tem o poder de construção contínua, mesmo que seja por um determinado tempo. Portanto, não estamos aqui excluindo a possibilidade de que um evento único e efêmero possa trazer em si um poder de mudança. O que dizermos então de indivíduos que abandonam uma vida religiosa que herdaram dos pais para seguirem uma outra religião antagônica à sua, ao assistirem uma única vez a uma manifestação de culto de sua então nova religião? O que dizermos então de pessoas que passam boa parte de suas vidas crente em uma determinada teoria e que, ao assistirem uma única palestra abandonam por inteiro tal teoria? Não estamos aqui sacrificando o poder de transformação que tais eventos trazem em si, apenas dizemos que comparativamente aos de longa duração, eles quase que não tem significância. A convivência, por si só, constrói paredes mais altas, mais densas, difíceis de serem derribadas ou transpostas; mas não impossíveis.
Ainda em Durkheim, podemos ouvi-lo dizer que
“...as representações coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam. Para compreender como a sociedade se representa a si própria e ao mundo que a rodeia, precisamos considerar a natureza da sociedade e não a dos indivíduos. Os símbolos com que ela se pensa mudam de acordo com a sua natureza (...). Se ela aceita ou condena certos modos de conduta, é porque entram em choque ou não com alguns dos seus sentimentos fundamentais, sentimentos estes que pertencem à sua constituição”.

Aqui podemos ver da forma mais clara possível um dos conceitos mais importantes trabalhados por Durkheim: o da coercitividade social. Este conceito nos mostra a necessidade de pensarmos o indivíduo sem deixar de levar em consideração – e na visão do autor o mais importante – a influência social e o que ela construiu no indivíduo. Se alguma conduta choca-se com seus sentimentos é porque nunca antes tinha sido construído socialmente tal pensamento ou sentimento. Achamos louvável da parte de Durkheim quando ele usa o termo “sentimento”, pois não somente as dimensões cognitivas e sociais estão presentes na noção de Representação Social, mas também a dimensão afetiva. O caráter simbólico e imaginativo desses sabores traz à tona a dimensão dos afetos, porque quando sujeitos sociais empenham-se em entender e dar sentido ao mundo, eles também o fazem com emoção, com sentimento, e com paixão. Assim, vemos se tratar de um “todo” construído na vida de uma sociedade e, conseguintemente, na de um indivíduo, e não apenas algumas dimensões da vida de um sujeito social. Tal coercitividade é completa, atingindo o indivíduo por inteiro e não apenas parte dele. Diante de tal realidade não há mesmo como pensar o sujeito (a parte) sem pensar o todo. Isto porque o indivíduo não é apenas um instrumento transformador da sociedade, é, também, um produto social, alguém cujas características são dadas pela sociedade e pela cultura em que está inserido. Há quem defenda que até mesmo características julgadas como exclusivamente pessoais são nada mais e nada menos que fruto do meio, interpessoal. Podemos perceber isto ao analisar o sonho, quando Robert M. Farr vem nos dizer que “embora os sonhos sejam pessoais a quem os sonha, eles não permanecem assim no contexto da Psicoterapia. O Pessoal se torna Interpessoal. O conteúdo dos sonhos é influenciado pela cultura de quem os sonha. A forma (isto é, o visual) e o conteúdo dos sonhos são reflexos sobre o indivíduo, daquelas representações coletivas que eram objetos de interesse tanto para Wundt como para Durkheim”. Tal afirmativa vem apenas para comprovar tal completude da coercitividade social, mostrando seu poder de influência mesmo em uma esfera que ultrapassa ao da consciência, ou seja, o da subconsciência.

Portanto, é na esfera pública, enquanto lugar de alteridade, que se fornece às Representações Sociais o terreno sobre o qual elas podem ser cultivadas e se estabelecer. Por ser um lugar de alteridade, nada mais comum do que haver choques entre várias e diferentes correntes interpretativas, quer no campo das ciências, da religião, das artes, de relacionamentos, enfim, onde existir o humano há ali a alteridade. Vários são os campos sociais, como bem nos diz Bourdieu, e nelas há o espaço da alteridade, resultando na disputa pelo poder simbólico em cada campo. Tal pluralidade humana faz com que as ações e os discursos tornem-se necessários.
“Se nós fôssemos todos idênticos não haveria a necessidade de comunicação ou da ação sobre o que nunca varia; [...] É na experiência da pluralidade e da diversidade entre perspectivas diferentes – que, porém, pode levar ao entendimento e ao consenso – que o significado primeiro da esfera pública pode ser encontrado”.

E, como esfera pública, podemos aqui entender, o “mundo mesmo”, na medida em que é comum a todas as pessoas e que se diferencia do espaço privado de cada um dentro dele. Desta feita, a esfera pública estabelece as fronteiras que tanto ligam como separam as pessoas, que tanto as une como os impede de tropeçar umas nas outras. Vale salientar que, de fato, a esfera pública é mesmo diferenciada da esfera privada, pois segue uma lógica própria. Embora o todo seja composta pelas partes, mas a união destas partes faz com que haja uma lógica própria. Embora o todo seja composto pelas partes, mas a união destas partes faz com que haja uma lógica singular, que chega mesmo a independer das lógicas das partes individuais. É o que nos diz Durkheim em seu estudo clássico sobre o suicídio, que aquilo que ele chamava de fatos Sociais somente poderia ser explicado em termos de outros fatos sociais. Assim, pode-se ver que métodos de investigação da Psicologia – excetuando a da disciplina Psicologia Social – nada podem fazer para interpretar os fatos sociais; e que somente à Sociologia compete tal avaliação.

Ainda refletindo sobre o espaço público, podemos ver que tal esfera existe em função da pluralidade humana, como espaço que se sustenta em função de diversidade humana. Numa rápida tentativa de nos aprofundarmos na análise do espaço público, podemos trazer para o centro de nossa análise a dialética entre o “um” e o “outro”. Por que quem sou “Eu” se não o “eu” que outros apresentam a mim? Como bem vem nos dizer G. H. Mead (1934) sobre o “outro generalizado”, que dá ao sujeito sua possível unidade enquanto Eu, e não há possibilidade de um desenvolvimento do Eu sem a internalização de Outros. Aqui, mais uma vez, podemos ver a importante interferência do meio (todo) sobre o indivíduo (parte). Nossa imagem é compartilhada como um outro espelho na vida cotidiana – a face de um Outro, os olhos de um Outro, o gesto de um Outro. Estamos, desta feita, sempre à mercê das interpretações alheias, e elas nos são por demais importantes, pois o nosso Eu, nossa essência, não restringe seu significado a nós tão somente; mas diz respeito e, principalmente, ao outro. O significado dado pelo outro é o que há de mais importante, pois no âmbito da esfera pública a imagem a ser refletida não será a auto-imagem, mas sim a imagem refletida no espelho do outro, ou seja, o olhar do Outro. É neste sentido, e dentro da mesma lógica, que Winnicott diz que é da diferença, no sentido pleno da palavra, que o Eu humano se desenvolve, porque “quando se fala do homem, se fala dele enquanto resultado de suas experiências culturais. O todo forma a unidade”. Dentro da visão Winnicottiana, essa formação vem desde o primeiro encontro do indivíduo com outros. Esse encontro assegura as bases para a confiança no meio e para as primeiras experiências relacionais, onde a comunicação e mais tarde linguagem vão ocupar um lugar central, pois é através da linguagem que as representações sociais serão divulgadas e compartilhadas entre si, representações estas que serão formadas – principalmente na fase inicial da vida – através de símbolos.

São através dos símbolos que coisas diferentes podem significar umas as outras e podem mergulhar umas nas outras; elas permitem uma variabilidade infinita, e, ainda assim, são referenciais. Assim, é da essência da atividade simbólica o reconhecimento de uma realidade compartilhada – a realidade de outros. Tal reconhecimento da realidade compartilhada faz com que haja um enriquecimento no “acervo” simbólico dos indivíduos. Este “acervo” irá garantir que o entendimento do outro – mesmo parcial – facilite (ou não) o seu relacionamento com os outros. É na construção da simbologia, e estas compartilhadas através da comunicação e da linguagem, que as relações são construídas e, através desta interação, que as Representações são intercambiadas – entendido aqui fica o simples fato que a própria interação já é, por si só, intermediada por Representações Sociais.

A própria formação do símbolo para se entender o mundo que o cerca é uma construção mental do ator social, e não se trata de construções rígidas, imutáveis, mas sim de representações que vão se desenvolvendo – ou até mesmo substituídas – à medida que o indivíduo também se desenvolve (amadurece) socialmente e mentalmente. Esse é o caráter imaginativo e construtivo, que a faz, de certo modo, autônoma e criativa. Porém, tal autonomia não é completa, pois os “elementos que estruturam a representação advém de uma cultura comum e estes elementos são aqueles da linguagem”. Mas esta relativa autonomia é exatamente a capacidade de dar às coisas uma nova forma – que constitui uma Representação. É uma forma de mediação entre o sujeito e o objeto-mundo. Este último reaparece sob a forma de representações, re-criado pelo sujeito, que, por sua vez, é ele mesmo também recriado pela sua própria relação com o mundo. Vale salientar que a substância, ou o conteúdo do qual as representações são feitas, são símbolos.

É na relação com o mundo que um “novo mundo” de significados são construídos. De um lado, é através das relações com os outros que as representações têm origem mediando o sujeito e o mundo que ele, ao mesmo tempo descobre e constrói. De outro lado, há nas representações símbolos “que são pedaços de realidade social mobilizados pela atividade criadora de sujeitos sociais para dar sentido e forma às circunstâncias nas quais eles se encontram”. Isto quer dizer que o sujeito psíquico não está nem abstraído da realidade social, nem meramente condenado a reproduzi-la. Assim, as representações sociais são um fenômeno mediador entre o indivíduo e a sociedade. Tal mediação encontra-se embebida nas comunicações e nas práticas sociais: diálogo, discurso, rituais e etc. Como estão contidos nas práticas sociais, as representações sociais vão além do trabalho individual do psiquismo pois, como estamos falando em representações “sociais”, devemos analisá-lo considerando enquanto totalidade, ou seja, o social envolve uma dinâmica que é diferente de um agregado de indivíduos. Isso porquê as leis que englobam a constituição de uma estrutura não podem ser reduzidos à soma de seus elementos separados. Ao contrário, elas dão à totalidade propriedades distintas das propriedades de seus elementos. Desta feita, podemos compreender que as representações sociais não são um agregado de representações individuais, da mesma forma que o social é mais que um agregado de indivíduos.
“Assim, a análise da representações sociais deve concentrar-se naqueles processos de comunicação e vida que não somente as engendram, mas também lhe conferem uma estrutura peculiar. Esses processos, eu acredito, são processos de mediação social. Comunicação é mediação entre um mundo de perspectivas diferentes, trabalho é mediação entre necessidades humanas e o material bruto da natureza; ritos, mitos e símbolos são mediações entre a alteridade de um mundo frequentemente misterioso e o mundo da intersubjetividade humana; todos revelam, numa ou noutra medida, procura de sentido e significado que marca a existência humana no mundo”.

São através destas mediações sociais, em suas diversas formas, onde são geradas e compartilhadas as representações sociais; espaço para aprendizados comuns, onde todos são alunos e professores concomitantemente. A comunicação em si pode ser considerada o giz da grande lousa da vida, pois é através dela que são escritas na nossa vida as diversas maneiras de se enxergar e interpretar o mundo que nos cerca.

Um outro lado das Representações Sociais merece atenção neste momento. Elas podem ser vistas como uma estratégia desenvolvida pelos indivíduos para enfrentar a diversidade e um mundo que, embora pertença a todos, transcende a cada um individualmente. Desta feita, elas são consideradas um espaço de fabricação comum, onde cada sujeito vai além de sua própria individualidade para entrar em domínio diferente, porém relacionado: o espaço público. Assim, elas não são apenas frutos da mediações sociais, mas são, elas próprias, mediações sociais. É o espaço do sujeito na sua relação com a alteridade, em busca da interpretação do meio, bem como ajudando na construção do mesmo mundo.

Para a construção deste espaço, é condição sine qua non que cada indivíduo utilize-se, sem ele mesmo se conscientizar disto, os sítios simbólicos de pertencimento. Tal conceito é trabalhado por pelo pensador marroquino Hassan Zaoual, que vem nos dizer que se trata de um espaço, de um “marcador imaginário de espaço vivido. Em outros termos, trata-se de uma entidade imaterial que impregna o conjunto do universo local dos atores”. Em sua visão, o sítio é sempre singular, porém, pode ser aberto – suscetível à diversas trocas culturais em que se mantiver contato –, ou fechado – mais peculiar às sociedades mais simples. Dentro destes sítios, estão contidas as crenças, conceitos e comportamentos que se articulam em torno de um sentido de pertencimento. Porém, devemos ter o máximo cuidado para não confundirmos este sítio (espaço) com o espaço geograficamente delimitado, onde se encontra o indivíduo. Embora o indivíduo seja local, este sítio simbólico é formado por diversas combinações que, no mesmo tempo, se amalgamam vários mundos em múltiplas dimensões. Uma sociedade moderna, portanto, contém, em si, uma diversidade de sítios cujas características decorrem do fato de pertencer a classes, grupos, redes, bairros, religiões e etc. Esta diversidade de sítios é, ao mesmo, fonte de conflito e de enriquecimento; uma sociedade moderna é, na verdade, um macrossítio que contém em si, diversos microssítios e, por sua vez, diversas representações sociais. Como o próprio indivíduo é o próprio intérprete de seu mundo e de sua situação, ele assim o faz com todo o peso simbólico em que foi influenciado em sua vida e com todo o peso de seu passado. Como o próprio autor do conceito nos diz,
“o conceito de sítio é ‘flexível’. Pode aplicar-se em múltiplas escalas e organizações [...]. Tais entidades empíricas podem se combinar de diversas maneiras e dar lugar a macrossítio contendo uma pluralidade de microssítio, e assim por diante. É preciso então situar, em cada caso, o nível de aplicação da noção”.

O que de mais importante podemos compreender de “sítio simbólico” é que ele porta-se como uma verdadeira bússola”, orientando os comportamentos individuais e coletivos; o que de fato irá dar o sentido em que os indivíduos atribuem ao seu próprio mundo. Em sintonia com o autor, nos atentemos para o fato de que a hibridação, fruto da mundialização e do encurtamento de suas fronteiras através dos diversos meios de comunicação, faz com que este sítio simbólico fique quase que constantemente aberto, contribuindo assim para o seu enriquecimento simbólico, porém, e ao mesmo tempo, ao enfraquecimento de suas bases de pensamento e, consequentemente, das interpretações de seu mundo e das situações que o cercam. Mas ainda assim este sítio é considerado seu lugar de encontro e ancoragem, pois contribui para “a integração das organizações sociais e dos indivíduos que as compõem. O sítio é antes de tudo uma entidade imaterial, um espaço cognitivo que estabiliza o caos social”. Para ajudar na estabilização, e contribuindo que o sítio torne-se um lugar de ancoragem, estão as crenças – frutos das atividades cognitivas dos indivíduos. Tais crenças estruturam as práticas e, por sua vez, estas produzem fatos correspondentes. Não é demais dizer que nossas práticas são frutos de nossas crenças, sobretudo na crença de si próprio, de nossas interpretações, das correntes filosóficas e/ou religiosas, e/ou científica, da moral em que adotamos ou deixamos ser adotados. Desta feita, nenhum conhecimento do social pode ser totalmente separado dos valores e das crenças que anima os fatos e os gestos dos atores de um dado lugar. “O homem é incrivelmente um ser crente. A necessidade de sentido e de direção pode ser motivo para fazer isto ou aquilo”.

Um outro ponto de vital importância e que merece ser discutido nesta reflexão, encontra-se em dois dos autores mais importantes nas discussão de Representações Sociais. Tratam-se de Moscovici e Jodelet; o primeiro reconhece a dupla face que as Representações Sociais possuem em ser, ao mesmo tempo, estruturas estruturadas e estruturas estruturantes – termos pegos emprestados em Bourdieu. Quando se fala que o sujeito é um sujeito social, estamos falando do âmbito estrutural do indivíduo. Jodelet vem corroborar com esta afirmativa quando fala que
“um indivíduo adulto, inscrito numa situação social e cultural definida, tendo uma história pessoal e social [...] não é um indivíduo isolado que é tomado em consideração, mas sim as respostas enquanto manifestações de tendências do grupo de pertença e/ou afiliação na qual os indivíduos participam”.

O sujeito, enquanto estrutura estruturada, nada mais é que o fruto de seu meio, fruto dos pensamentos e manifestações políticas e culturais que o cerca. Afinal de contas, quando nascemos a cultura já existe, e somos automaticamente enquadrados nela. Correspondemos, e espera-se que de fato sejam correspondidas as nossas ações ao mundo e suas peculiaridades históricas e culturais que nos cercam.

O outro lado da face das representações sociais expressa a sua característica intra-individual, uma característica dotada de poder de transformação da realidade social. O sujeito não é e não pode ser visto apenas como mero reprodutor do meio, ele tem sim poder de transformação de sua realidade através das interpretações do seu meio. Esta interpretação não é apenas fruto da lógica e da cognição, mas também de elementos afetivos, sociais, da linguagem e da cultura como um tudo; o que não quer dizer que não haja no indivíduo capacidade de discordar, de não se afeiçar de algum elemento cultural ou ideológico, mas até o simples fato de não gostar de algum elemento cultural de seu meio, por exemplo, se dá pelo conhecimento prévio de outras culturas que, uma vez comparada com a cultura de seu meio, julgue o indivíduo ser esta última melhor que a primeira. Muitos são os meios que colaboram para este conhecimento; desde um simples intercâmbio cultural até, e principalmente, pelos meios de comunicação – sobretudo a televisão. Através dos meios de comunicação, uma diversidade de mundos, culturas e ideologias são colocados como elementos de um cardápio que fica à dispor da aceitação do sujeito. Seu leque de escolhas se abre, e até mesmo, se amalgamam, formando assim um novo aspecto para sua escolha e mostrando, desta feita, a característica estruturante, criadora e transformadora da realidade.

Destarte, quando dizemos que tal realidade pode ser modificada pelo indivíduo através de um conhecimento prévio de outras realidades, estamos com isso remetendo as Representações Sociais como produto social, das condições sociais que a engendram, ou seja, o seu contexto de produção. O simples fato do conhecimento prévio de outro mundo já é, por si só, elemento deste contexto. É analisando o contexto que se compreende as construções que deles emanam e nesse processo o transforma. Portanto, como contexto, não podemos apenas entender o espaço social em que a ação se desenrola, como também à partir de uma perspectiva temporal. Não visão de Spink (1995), três tempos marcam esta perspectiva temporal:
“a) o tempo curto da interação que tem por foco a funcionalidade das representações; b) o tempo vivido que abarca o processo de socialização – o território do ‘habitus’ (Bourdieu, 1983), das disposições adquiridas em função da pertença a determinados grupos sociais; e o c) tempo longo, domínio das memórias coletivos onde estão depositadas os conteúdos culturais cumulativos de nossa sociedade, ou seja, o imaginário social”.

Saliento aqui que encontraremos no tempo longo os núcleos mais estáveis das representações – considerando aqui a moral da sociedade como seu principal constituinte –, enquanto que no tempo curto concentra-se a diversidade e a criação, como fruto do aqui-e-agora da interação.

Mas não podemos falar aqui do contexto e suas peculiaridades, sem falarmos do Senso-comum. Por vários anos, o senso-comum (ou saber popular) foi visto como uma forma de pensamento primitivo, uma forma de raciocínio pré-lógico e fragmentado. A teoria das Representações Sociais vem justamente romper com esse pressuposto evolucionista ao mostrar que o senso-comum vem servir como uma
“ancoragem e tem como funções orientar condutas, possibilitar a comunicação, compreender e explicar a realidade social, justificar ‘a posteriori’ as tomadas de posição e as condutas do sujeito, e um função identitária que permite definir identidades e salvaguardar as especificidades do grupo”.

Assim, podemos perceber que o senso-comum é um espaço onde sedimenta-se várias ideologias que, ao longo do tempo, passaram e ainda continua a passar, mas que não se esvaeceram, deixando assim sua marcas e contribuições para a formação deste rico terreno. É por isso que falar em Representações Sociais é remeter-se ao conhecimento produzido no senso-comum. Mas não é todo e qualquer pensamento, mas uma forma de conhecimento compartilhado, articulado, que se constitui como uma teoria leiga à respeito de determinados objetos sociais. Tal terreno é formado através da intermediação da comunicação. Aliás, comunicação e Representação Social são inseparáveis, interdependentes. Como nos diz Moscovici,
“uma condiciona a outra, porque nós não podemos comunicar sem que partilhemos determinadas representações e uma representação é compartilhada e entra na nossa herança social, quando ela se torna um objeto de interesse e de comunicação”.

Dentre os diferentes tipos de comunicação, a conversação é destacada por Moscovici como o primeiro gênero de comunicação através do qual se constroem as representações sociais. Destaco aqui também – não colocando no mesmo patamar da conversação – as propagandas, principalmente as televisivas, bem como telenovelas, filmes, livros e revistas – estes numa proporção bem menor. É através da comunicação que o sujeito recebe informações sobre os objetos existentes no mundo, bem como das ações dos outros. Essas informações são filtradas e arquivadas na memória, que permite ao sujeito compreender as ações e os objetos, bem como agir sobre eles. Assim, é através desta compreensão que o sujeito constrói suas ideias à respeito do objeto, pela filtração das informações, e não a entende de forma nua e crua, como a recebeu.

É por isso que muitas vezes atribuímos significados diferentes à cerca de um mesmo objeto. Esta compreensão e forma como filtramos as informações dependem sobremaneira da desigualdade de interesses que os sujeitos dão ao mesmo objeto. É uma tendência tão natural que, cremos, seja por isso mesmo que tenha nascido a necessidade de se dissecar a ciência em partes, e uma mesma ciência em disciplinas, e estas, por sua vez, divididas em correntes de pensamentos teóricos. A compreensão está sempre à mercê dos hábitos lógicos e linguísticos de tradições históricas, do acesso à informação e da estratificação de valores. O modo como se apreende as informações, depende de outros conhecimentos e valores já arquivados em nossa memória. É uma construção já equilibrada servindo como base para outras construções do aqui-e-agora. Enfim, “a forma pela qual os conteúdos das representações são determinados e organizados, depende do lugar que os indivíduos ocupam ou das funções que exercem”.

Uma outra verdade nos é dada quando olhamos para um outro “aspecto-função” das Representações Sociais, ou seja, seu papel de “manutenção da identidade e equilíbrio sócio-cognitivos de um grupo, uma vez que ela mobiliza as defesas nos momentos de irrupção de novidades, temendo que estas possam se constituir em uma ameaça ao ‘status quo’, aos valores dominantes, aos modelos e aos quadros de pensamentos existentes nos grupos políticos e religiosos”. É a esfera dos choques ideológicos que se dá no espaço público; isso faz-nos mostrar que nem sempre o intercâmbio de valores e ideologias produzem, como consequência unilateral, o enriquecimento para ambas as partes. O outro, muitas vezes, pode se tornar algo ou alguém a ser combatido, aleijado, ou até mesmo exterminado, tudo isso sempre no intuito de se manter a identidade de um grupo.

Enfim, podemos resumir as funções das Representações Sociais, como bem fez Maria de Fátima de Souza Santos, assim:
“a) Função do Saber: compreender e dar sentido à realidade social; b) Função de Orientação: guias de conduta que orientam as práticas sociais; c) Função Identitária: pois as representações Sociais possibilita uma identidade grupal; d) Função Justificadora: servem como referências justificadoras do comportamento”.

Adiciono a estas, uma outra função, a e) Função Manutenção das identidades: uma vez que serve como defesa diante das irrupções das novidades.

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